terça-feira, 27 de junho de 2017

Livros e Viagens - Da Montanha Sagrada




William Dalrymple é um jornalista e escritor escocês pouco conhecido em Portugal. Que eu saiba, não há nenhum livro dele traduzido em português (o que me põe, por vezes, interrogações sem resposta àcerca dos critérios editoriais do nosso pequeno país). Felizmente, eu leio bem inglês e posso escapar à ditadura editorial cá do burgo. E foi assim que eu consegui aceder a este livro magnífico, que fica numa zona de cruzamento entre a crónica de viagens e a investigação histórica.
O objetivo de Dalrymple foi seguir os passos de um monge do século VI, John Moschos ou, em português, João Moscus, que no seu tempo viajou pelo Levante, entre o norte da Grécia e o Egipto. Nessa época, esta zona a que hoje chamamos Médio Oriente, era o núcleo central do Cristianismo. Ali tinha surgido e dali se expandia esta religião que, com o tempo, converteria toda a Europa e parte do Mundo. No século VI, era uma zona de experiências místicas, onde se fundiam muitas influências diferentes. O Islamismo ainda não tinha sido criado e surgiam as primeiras experiências monásticas. Como refere Dalrymple, o mundo descrito por John Moschos "...não é apenas curioso: as suas crenças e valores são para nós virtualmente incompreensíveis. Era um mundo onde eunucos chefiavam os exércitos imperiais nas batalhas; onde grupos de monges eram conhecidos por lincharem e assassinarem senhoras pagãs quando elas passavam nas suas liteiras nos bazares de Alexandria; onde estilitas esfarrapados e meios nús deliravam no alto dos seus pilares; e onde os dendritas levavam à letra as instruções de Cristo para imitar as aves do céu, vivendo em árvores e construindo para si próprios pequenos ninhos nos ramos superiores." 
É este mundo que Dalrymple se propõe descobrir, seguindo o itinerário de Moschos, desde o Monte Athos, a montanha sagrada, até ao Egipto. O mundo que ele vai desvendando é já muito diferente do descrito pelo monge levantino, e é isso mesmo que torna esta leitura fascinante. Há coisas que se mantêm, como a proibição de entrada de mulheres no mosteiro do Monte Athos. E, se aqueles eram tempos perigosos, não o são menos no momento em que Dalrymple segue os seus passos e escreve o seu livro. 
Nós, leitores comodamente instalados, vamos acompanhando o seu périplo. Detemo-nos em Istambul, passeamos pelos bazares e apreciamos Haghia Sophia, mas também nos apercebemos dos conflitos entre turcos e gregos, naquela que já foi, durante mil anos, a capital do cristianismo oriental.
Dalrymple vai sempre avançando, falando com todo o tipo de pessoas, gente do povo e monges de eremitérios perdidos, soldados e comerciantes. Depois de Antioquia e Edessa, visita as últimas igrejas  cristãs arménias. Entra na Síria, contacta com as prósperas comunidades cristãs de Alepo. Cruza um Líbano imerso numa guerra civil sem fim à vista, manchada por massacres e acusações mútuas. Passa por colonatos israelitas implantados em terras palestinianas, alimentando ressentimentos e amarguras. Visita campos de refugiados de palestinianos muçulmanos e campos de refugiados de crstãos libaneses. Finalmente, vai de Jerusalém ao mosteiro copta de Santo António o Grande, já em pleno deserto egípcio e aí termina a sua viagem, como João Moscus a terminou. 
Dalrymple escreve um livro a dois tempos, contrapondo o mundo do século VI, um mundo que vivia na sombra da grande Bizâncio, ao mundo do século XX, em que as tensões são diferentes, mas não menores. Nós, lendo este livro em 2017, podemos acrescentar um terceiro tempo, pois o mundo já não é o mesmo. 
Não se pense, porém, que é um livro pesado ou deprimente. Dalrymple vai relatando peripécias e conversas, algumas vezes cómicas, outras perigosas, outras ainda comoventes. É um livro de descoberta do fio da história de uma região, tendo como pretexto uma viagem. E, por vezes, as descobertas são inesperadas e surpreendentes.

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